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Em um planeta que se aquece, precisamos lidar com a questão da água na Amazônia.

Por Marcia Nunes Macedo

Ilustración de Constanza Gaggero
Constanza Gaggero

6 de julho de 2024

SumárioA Amazônia está sofrendo secas e inundações cada vez mais intensas devido ao aquecimento global. E a água, não apenas o carbono, tem um papel fundamental na estabilidade climática a nível regional e global. Precisamos urgentemente de soluções climáticas que cuidam dos recursos hídricos ao mesmo tempo que reduzem as emissões de carbono para proteger os ecossistemas amazônicos e o clima global.

Marcia Nunes Macedo

Sobre o autor/a:

Marcia Nunes Macedo

A Dra. Macedo é pesquisadora e diretora do Programa de Água no Woodwell Climate Research Center, pesquisadora associada no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, e membro do Painel Científico para a Amazônia. Sua pesquisa aborda as consequências do desmatamento e da degradação florestal para o clima e os ecossistemas tropicais. Macedo combina dados observados de campo, imagens de satélite, e modelagem científica para entender esses processos e desenvolver soluções baseados na ciência.

Olhando o rio de uma cabana flutuante na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, na Amazônia central, é difícil imaginar que a água poderia se tornar um problema aqui. É o final da estação chuvosa e os níveis do rio, como é de costume, alcançaram seu pico entre 9 e 12 metros acima da média na estação seca. Para o meu deleite, levamos uma canoa para andar pelas “trilhas” na floresta onde observamos peixes grandes como o tambaqui e o pirarucu, que temporariamente se veem livres das margens do rio antes secas. As comunidades ribeirinhas que visitamos estão acostumadas com essas grandes variações sazonais, havendo construído suas casas sobre palafitas na margem do rio, e usam barcos para navegar os altos e baixos do rio, do qual dependem para os seus modos de vida e transporte.

A água é omnipresente aqui. O ar úmido do Atlântico traz chuva para o oeste da América do Sul. Quando cai sobre as florestas, fazendas, e cidades da Amazônia, a água da chuva se infiltra no solo, reabastecendo os aquíferos subterrâneos, interagindo com a vegetação e a infraestrutura, e escoando através de redes fluviais de volta para o oceano. A água também é energia. É preciso de uma quantidade imensa de energia solar para evaporá-la, o que resfria a superfície da terra e produz vapor d'água. Na medida que as florestas amazônicas bombeiam a água do solo de volta para a atmosfera, alimentam rios voadores que transportam energia e água por longas distâncias, liberando-as como chuva em outros lugares. Esse ciclo hidrológico funciona como uma imensa esteira aérea que redistribui energia ao redor do mundo, fornecendo água para as pessoas, a agricultura, e os ecossistemas.

Se tudo for de acordo com os planos, a COP30 acontecerá em Belém do Pará ano que vem, perto de onde o rio Amazonas despeja 7000 quilômetros cúbicos por ano de água no Oceano Atlântico, um quinto da vazão mundial de água doce, a velocidades de até 250.000 metros cúbicos por segundo.

Enquanto os líderes mundiais e os negociadores climáticos preparam para se reunir em uma cidade amazônica pela primeira vez, devem lembrar que a água, e não o carbono, tem a chave do nosso futuro climático.

Enquanto os líderes mundiais e os negociadores climáticos preparam para se reunir em uma cidade amazônica pela primeira vez, devem lembrar que a água, e não o carbono, tem a chave do nosso futuro climático. Apesar do aquecimento global ser impulsionado por gases de efeito estufa como o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso acumulados na atmosfera, no fundo a crise climática é uma crise de água.

Não há dúvida que as emissões de carbono alteram o clima global, mas é o ciclo de água que impulsiona este sistema, conectando a terra, os oceanos e a atmosfera. Hoje o aquecimento global está supercarregando este motor e intensificando as secas extremas, as enchentes, e a insegurança hídrica. Os impactos locais dessas mudanças ressaltam a urgência de encontrar soluções climáticas que priorizem a água junto aos esforços para mitigar emissões de carbono.

Os últimos dois anos indicam que estamos levando o ciclo de água ao seu limite. Em 2023, o El Niño trouxe chuvas abaixo da média para o norte da América do Sul e chuvas acima da média para o sul do Brasil. Temperaturas recordes atribuídas às mudanças climáticas intensificaram a seca no centro do Brasil. Ao mesmo tempo, temperaturas altas na superfície do oceano Atlântico intensificaram as chuvas no sul, causando as secas, incêndios e inundações inusitadas que se tornaram manchetes no último ano.

As inundações no estado do Rio Grande do Sul destacam os enormes custos sociais. Para as mais de 640.000 pessoas deslocadas e as 163 que perderam suas vidas durante este evento devastador, as mudanças climáticas são uma realidade inegável.

De 2017 a 2022, quase 29 milhões de brasileiros foram afetados por chuvas, inundações ou deslizamentos. Os custos econômicos são estimados em até R$18,9 bilhões de reais (em torno de US$3,5 bilhões de dólares) em um só ano. Os custos humanos são incalculáveis. No outro extremo, a seca contínua devastou sistemas naturais e antrópicos em toda a Amazônia. Enquanto a temperatura do ar alcançou máximos históricos, os níveis dos rios caíram subitamente ano passado, muito antes e mais baixo do que o normal.

Na Amazônia central brasileira, isso levou à mortandade de peixes, incêndios florestais e perdas agrícolas que afetaram desproporcionalmente os agricultores familiares, incluindo povos indígenas e comunidades ribeirinhas. Os níveis baixos dos rios interromperam a navegação fluvial, isolando centenas de comunidades que dependem de rios para acessar mercados, atenção médica, educação e outros serviços essenciais.

Para piorar a situação, o número de incêndios detectados em florestas primárias amazônicas aumentou em mais de 150% em 2023 comparado com 2022, apesar de avanços na redução do desmatamento. Um único incêndio perto de Santarém, no Pará, queimou mais de 2.500 km², contribuindo para a fumaça sufocante que se espalhou por grande parte da Amazônia no ano passado. Em outubro e novembro, a qualidade do ar em Manaus esteve entre as piores do mundo, com o material particulado chegando a quase 315 microgramas por metro cúbico de ar (µg/m³), expondo milhões de pessoas a níveis de poluição muito além do limite de 15 µg/m³ recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

Nas cabeceiras do rio Xingu, no sudeste da Amazônia, o ritmo de mudança tem sido assustador. Quando comecei a trabalhar na região há quase 20 anos, as florestas eram muito úmidas para sustentar grandes incêndios florestais.

Nas cabeceiras do rio Xingu, no sudeste da Amazônia, o ritmo de mudança tem sido assustador. Quando comecei a trabalhar na região há quase 20 anos, as florestas eram muito úmidas para sustentar grandes incêndios florestais. Os povos originários que vivem no Território Indígena do Xingu usavam fogo regularmente, sabendo que era quase impossível esse fogo fugir do controle e alastrar em áreas de florestas vizinhas. Hoje, o desmatamento em larga escala e o aquecimento global tornaram as noites mais quentes, a estação seca mais longa, e as secas mais frequentes — uma combinação perfeita para incêndios florestais descontrolados que já afetaram pelo menos 25% das florestas do território e reduziram a qualidade do ar para todos.

Tempos difíceis nos aguardam. Eventos extremos como esses ocorrerão com mais intensidade e frequência a menos que o mundo deixe de queimar combustíveis fósseis e acabe com o desmatamento rapidamente. Não existe escapatória: um mundo onde a temperatura é 2°C mais quente será um mundo onde a probabilidade de secas é 3-4 vezes mais alta do que hoje. Para diminuir e eventualmente reverter essas mudanças, precisamos parar com as emissões e ainda encontrar estratégias para retirar carbono da atmosfera. Isso inclui a proteção de florestas primárias e o manejo de paisagens para aumentar a captura de carbono e evitar a degradação florestal por incêndios e outros distúrbios.

Mas o nosso foco intenso no carbono muitas vezes nos leva a uma lógica contraditória na busca de soluções climáticas. Por um lado, governos criam incentivos para a agricultura de baixo carbono e por outro investem na expansão de agricultura em regiões áridas que já sofrem de estresse hídrico extremo. Programas de reflorestamento visam compensar emissões de carbono com o plantio de arvores, mas muitos usam espécies não-nativas e sedentas de água como o eucalipto, exacerbando a escassez de água e o risco de incêndios. Alguns programas equivocados ainda tentam substituir campos e savanas nativas com florestas ou áreas de cultivo em regiões que serão incapazes de sustentá-las dentro de uma década. Além disso, as taxas de desmatamento continuam altas, longe de ser compensadas por projetos de reflorestamento. Uma floresta primária leva décadas ou séculos para crescer e apenas dias ou semanas para ser derrubada e queimada, emitindo todo o seu carbono armazenado e alterando seu potencial de ciclagem de água.

Abordar e reverter as mudanças climáticas dependerá do manejo efetivo de carbono para evitar emissões e reduzir os gases de efeito estufa. Adaptação aos impactos já em andamento dependerá do manejo efetivo de recursos hídricos para garantir a segurança alimentar, mitigar os riscos de incêndio, e fortalecer a resiliência social e ecológica. Esses esforços podem e devem se sobrepor. À medida que os eventos climáticos extremos se tornam mais prováveis, precisamos agir com urgência para reformular nossa abordagem de preparação para desastres.

Os eventos do último ano ressaltam a necessidade de fortalecer políticas públicas, incluindo sistemas de previsão e alerta precoce, planos de resposta emergencial para secas, manejo sustentável de recursos hídricos, e ações de prevenção e combate a incêndios, para lidar com a instabilidade climática. Governos desde o nível municipal ao federal precisam investir em estratégias coordenadas de prevenção, previsão, e resposta às emergências para ajudar comunidades e ecossistemas a “enfrentarem a tempestade" e navegar os inúmeros desafios impostos pela crise climática.

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